sexta-feira, 19 de novembro de 2010

(Demi) As angústias de Demi Lovato

O que o drama da estrela teen revela sobre sua geração

Para as crianças e os adolescentes, Demi Lovato dispensa apresentações. Todos sabem quem ela é. Para os que têm pouco contato com o universo dos ídolos teen, informações básicas podem ser necessárias. Vamos a elas: Demi Lovato é uma estrela americana de 18 anos. É um desses talentos descobertos e formados pelos estúdios Disney. Canta, dança, interpreta, atua em filmes, séries de TV e viaja o mundo fazendo shows.

O traço mais marcante de seu rosto é o sorriso. Um sorriso rasgado, gigante, realçado por dentes alinhadíssimos. Um sorriso que contradiz, sabe-se agora, as angústias que ela enfrenta há tempos. No início do mês, Demi cancelou sua participação nos shows que o grupo Jonas Brothers faria no Brasil. Crianças e adolescentes ansiosos para ver a moça ao vivo (ou pelo menos pelo insosso telão, como sempre acontece nesses eventos), não entenderam direito por que, afinal, a estrela não apareceu.

Os organizadores da turnê deram uma justificativa telegráfica. Demi se internaria numa clínica de reabilitação para se tratar de problemas físicos e emocionais. Segundo os sites de celebridades e as agências de notícia, ela estaria se automutilando e sofrendo de transtornos alimentares. Na quarta-feira (17), surgiram boatos de que deixaria a clínica na próxima semana. O porta-voz da atriz negou. Disse que ela passará o Dia de Ação de Graças com a família, na clínica.


A primeira coisa que nos vem à mente quando ouvimos histórias como essa é que o mundo do show business é insalubre e cruel. Crianças e adolescentes submetidos precocemente a tantas exigências (de produtividade, de excelência, de sobrevivência na selva da fama) não podem mesmo acabar bem. Essa é uma meia verdade. Pensar que nossos filhos e sobrinhos estão livres desses distúrbios simplesmente porque não são artistas mirins é se refugiar no conforto da alienação.


ABC/RICK ROWELL/Divulgação
DEMI LOVATO
A estrela no American Musica Awards em 2009
A automutilação costuma começar na adolescência. É caracterizada por cortes provocados no próprio corpo com faca, gilete, arame, estilete, caco de vidro ou qualquer outro objeto cortante. A pessoa também pode se bater, se morder, se queimar. Segundo os psiquiatras, o problema não é fruto de uma pressão momentânea, de uma dificuldade circunstancial de lidar com dificuldades. Para que uma pessoa comece a se automutilar, ela precisa estar predisposta a isso. Os fatores de risco mais frequentes:

  • ter sofrido negligência, bullying ou abuso sexual na infância
  • ter baixa autoestima (sentir-se feia, gorda etc)
  • usar drogas ou ter usuários de drogas na família
  • saber que algum amigo ou parente se automutila
A automutilação não é um diagnóstico, ainda não é considerada um transtorno isolado. É um comportamento que pode ocorrer em pessoas que sofrem de outros transtornos. É comum encontrar pessoas deprimidas ou bulímicas que também praticam automutilação.

Por que, afinal, alguém faz isso? A explicação parte de duas raízes: uma biológica, outra psicológica. Quem tem o costume de se automutilar conta que não sente dor. Pelo contrário, diz sentir alívio de sensações opressoras como culpa, raiva, angústia, tristeza. Uma teoria de ordem biológica sugere que essas pessoas liberariam níveis elevados de endorfina no momento do corte. Níveis bem mais elevados do que liberam as pessoas que não sofrem desse problema e se cortam acidentalmente. Essa liberação exagerada de endorfinas seria a responsável pela sensação de bem-estar relatada por quem se automutila. O efeito dura pouco. Alguns minutos depois, a tristeza e a angústia voltam. 

 Esse processo pode provocar dependência química. “Muitos pacientes acabam se viciando em automutilação. No começo, se automutilam quando estão tristes. Depois, fazem isso também quando estão felizes. É como os alcoólatras, que bebem na alegria e na tristeza”, diz a psiquiatra Jackeline Giusti, coordenadora do Ambulatório de Automutilação do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, em São Paulo. O laboratório que Jackeline coordena foi criado em 2005. Nos últimos anos, ela acompanhou 40 pacientes de 20 a 30 anos. Todos haviam começado a se automutilar na adolescência.

Além da teoria biológica, existe também uma explicação de ordem psicológica. A maioria dos pacientes tem um traço comum: são pessoas que apresentam dificuldades para dar limites aos outros. Ouvem um monte de desaforos, coisas que consideram absurdas ou injustas, mas são incapazes de reagir à altura. “Em geral, têm uma autoestima muito baixa. Por isso, acham que não podem brigar com a amiga, mesmo quando a amiga está sendo injusta”, diz Jackeline. Resultado: ficam caladas e cheias de angústia. Se tiverem predisposição, se tiverem sido expostas aos fatores de risco mencionados acima, podem ter o destino de Demi Lovato.

Essas meninas e esses meninos sofrem sem deixar pistas. São bons alunos, trabalham, estão no nosso convívio social. Podem ser mais quietos, às vezes mais depressivos, mas se comportam como a maioria. Não são delinquentes, não fazem nada que denuncie o tamanho do problema que enfrentam. Trancados no quarto ou escondidos em qualquer outro lugar, se automutilam. Depois escondem os ferimentos com blusas de mangas compridas.

“Muitas adolescentes me mandam emails pedindo ajuda. Elas sabem que precisam de um psiquiatra, mas não têm coragem de contar aos pais o que está acontecendo porque não querem ser vistas como delinquentes”, diz Jackeline. “Os adultos precisam entender que esse é um sofrimento real. Não é frescura de adolescente.”

Infelizmente ainda existe muita desinformação e preconceito em torno desse assunto – assim como acontece com tantos outros males psiquiátricos. Mas é preciso saber que os casos de automutilação não são tão raros como podem parecer. Um estudo publicado neste ano no periódico científico Journal of Youth and Adolescence dá boas pistas sobre a extensão do problema. Os pesquisadores Amy M. Brausch, da Eastern Illinois University, e Peter M. Gutierrez, da University of Colorado, fizeram uma pesquisa com 373 estudantes do ensino médio, nos Estados Unidos. A idade média dos participantes era de 15 anos. Pouco mais da metade (52%) era composta por meninos e 48% por meninas.

Segundo o trabalho, 21% dos estudantes se automutilavam. Mas eles não tinham intenção suicida. Sabiam que os cortes que provocavam não seriam fatais. A situação de 4% dos alunos era mais complicada: eles se automutilavam e relataram já ter tentado suicídio. O estudo, na íntegra, está disponível aqui.

Não pretendo, com essa coluna, criar um tom alarmista. Nem induzir os pais a achar que todo adolescente é um automutilador em potencial. Gostaria apenas de mostrar que o sofrimento pode estar atingindo mais crianças, adolescentes e jovens do que estamos dispostos a imaginar. Se o sofrimento existe, ele não deve ser negligenciado.

Quem passa pelo que Demi está passando precisa de tratamento psiquiátrico. Em geral, os médicos usam remédios para conter o impulso (neurolépticos, anticonvulsivantes etc) e para tratar a tristeza e a angústia (antidepressivos). A psicoterapia é fundamental porque ajuda o paciente a interpretar as situações de uma forma mais realista. E a se angustiar menos.

Muitas mães devem estar se perguntando se a divulgação do caso de Demi Lovato pode estimular seus fãs a fazer o mesmo. Esse risco existe, ainda que em pequenas proporções. A melhor forma de evitá-lo é explicar às crianças que a automutilação não é uma moda, um jeito rebelde de ser. É a expressão do sofrimento. Demi está sofrendo e precisa de tratamento para voltar a ser a estrela que elas admiram.

Conviver com a fama não deve ser fácil para nenhum adulto. Imaginem o que é isso para uma menina. O mais cruel é perceber que suas emoções mais íntimas viraram tema de fofoca e de conversa de mesa de bar. Demi merece todo o nosso respeito e nossa torcida pela sua recuperação. As crianças, espertas como são, merecem informações claras e corretas. Não meias verdades.

By: Maria Layane(ADM)

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